Este é um post dedicado a um artigo elaborado como trabalho de conclusão do curso de Psicologia do Centro Universitário Jorge Amado tendo como tema, “A influência dos super-heróis no processo de diferenciação do Self em crianças”. O objetivo do artigo é analisar como a identificação com os super-heróis influencia as crianças no processo de diferenciação de Self.
O trabalho se baseou na idéia de que os super-heróis influenciam as crianças no seu processo de diferenciação do Self, que os comportamentos advindos do super-herói por meio de imitação funcionam para a criança como meio de se diferenciar da família de origem, e ir de encontro com seu self pessoal, tendo em vista também o papel da mídia na formação do apego infantil a esses heróis. A identificação da criança com seu super-herói, juntamente à forma como a veiculação do mesmo é proporcionada pela mídia, tem como resultado a assimilação das características desses heróis pelas crianças, influenciando assim no processo de auto-referência.
O conceito de self tem se tornado central nas teorias psicológicas, visto que a própria ciência da Psicologia já traz consigo algumas dessas noções, como a individualidade e a intersubjetividade.
O self pode ser considerado como a capacidade de uma pessoa em se auto-referenciar como indivíduo, de se distinguir como sujeito perante o objeto. Logo ao nascer, a criança vive um intenso estado de fusão com a mãe, estando uma ligada à outra emocionalmente, no decorrer dos anos a criança tem como função se tornar indivíduo, se tornar uma pessoa emocionalmente independente (BOWEN, 1988, tradução de VASCONCELOS, 2009).
Bowen considera que todo ser humano tem em si uma energia que o impulsiona ao processo de individuação, tornando-se uma pessoa emocionalmente mais autônoma, porém ninguém é completamente individuado, pois o vínculo inicial nunca é totalmente quebrado, havendo uma diferença entre vínculo inicial mantido e massa indiferenciada do Eu familiar.
No momento em que a criança se diferencia de sua família ela é estimulada e regida por uma energia de individuação. Nessa fase, o mundo é sentido pela criança como uma gama de percepções, a partir desses estímulos, ela começa a apresentar suas próprias vontades, a elaborar-se como indivíduo perante o mundo, a diferenciar-se.
Para Bowlby (1982), os bebês a partir do apego inicial formado com os pais ou com figuras de apego, criam modelos internos funcionais, baseando-se em um apego seguro ou inseguro. Esse modelo de relação também pode ser repetido, feito um molde, em outras relações futuras. Nos primeiros anos de vida, o apego formado pela criança é relacional, ou seja, formado por relações específicas e individuais, sendo a qualidade da relação a segurança da criança naquele indivíduo.
A figura de apego além de proporcionar a criança uma base-segura, funciona também como meio de explorar o ambiente, fornecendo uma base sólida e estável para que a mesma se sinta a vontade para “ir” e “vir” na relação segura. Em uma visão contemporânea pode-se entender o apego como um vínculo além da díade mãe-filho, como um fenômeno relacional, abrangendo figuras parentais de modo geral, amizades, entre outros contextos vividos pela criança.
Para Fromm (1990), o apego é gerado por um anseio profundo de desamparo e essa figura de apego pode ser de toda espécie, um professor, um astro de cinema, ou até os ídolos, sejam eles reais ou imaginários. O ídolo seria uma figura necessária ao homem, tendo como função dar apoio e força, essa figura do ídolo, do herói, sempre fez parte da história do homem, desde a mitologia grega. Essa vinculação ao ídolo se daria pelo fenômeno da transferência, que é encontrado durante toda a vida, principalmente em relações duradouras de amizade e afetividade.
Pelo vínculo formado ao super-herói, a criança absorve os aspectos do mesmo nesse processo de diferenciação de sua família de origem. O papel da mídia no apego infantil a esses heróis é ativo, a maneira como a mesma veicula a imagem desses ídolos infantis, os associando aos efeitos especiais, jingles, cores fortes e explosões, cria na criança um apelo à imitação de comportamento, que pode ser internalizado e integrado como um traço da identidade na infância (FLORES, 2003).
A mídia atual fugiu do seu papel de divertimento e lazer, se tornando um instrumento pelo qual o mundo é apresentado ao indivíduo, muitas vezes, sendo esse o único instrumento. A maneira como a imagem dos heróis são passadas às crianças geram elementos de imitação, pois os mesmos propõem um mundo lúdico e de magia, com personagens caracterizados como fortes e guerreiros, traços e cores peculiares juntamente com o jingle no momento em que aparecem despertam a atenção das crianças e a manutenção das mesmas em frente a tela (MUNARIM, 2004). Como no caso dos Power Rangers, a aparição dos heróis é acompanhada por explosões, cores fortes e grande apelo visual.
O processo de diferenciação de self ocorrido na infância e a ligação das crianças aos ídolos revelam a importância dos mesmos nessa fase do desenvolvimento e também a influência que se pode exercer no imaginário infantil, nos comportamentos e condutas da criança perante a sociedade.
É comum da infância, imitar o que se percebe e a realidade que se cerca, sendo assim os valores trazidos e externalizados pelo herói são copiados pela criança, modelando sua conduta. A imagem do herói de hoje,
está embutida de estereótipos de gêneros que influenciam na formação dos valores da criança. Para os meninos [...] um padrão de masculinidade machista, como a violência e a agressividade. Já com as meninas é explorada a feminilidade baseada na delicadeza e no padrão físico europeu ocidental (ALVES; DAMÁSIO; LIMA, 2010, p. 6).
De acordo com Mota (2003), os heróis da atualidade são personagens altamente agressivos, com o estereótipo masculino negativo, demonstrando sua virilidade fazendo uso demasiado de armas e violência. Essa versão de masculinidade apresentada a garotos em idade de construção e empossamento de si, pode promover comportamento violento nos mesmos, visto que há uma banalização da violência, sendo usada inclusive como meio de se obter o desejado.
A identificação na infância com um herói também tem benefícios. Há uma proporção educativa na imagem dos super-heróis, principalmente no aspecto de valores morais. Entendendo educação não somente como método em sala de aula, o processo de imitação dos comportamentos apresentados pelo ídolo também é um processo de aprendizagem para a criança (FOGAÇA, 2003).
Desde nossa infância até a idade adulta, os super-heróis podem nos lembrar da importância da autodisciplina, do auto-sacrifício e de nos devotarmos a algo bom, nobre e importante. Eles podem ampliar nossos horizontes mentais e apoiar nossa determinação moral, enquanto nos entretêm. Não precisamos dizer que os quadrinhos de super-heróis têm a intenção de ser instrutivos ou de natureza moralista. (...) Os super-heróis mostram-nos que os perigos podem ser enfrentados e vencidos. Eles exibem o poder do caráter e da coragem acima da adversidade. E assim, até quando lidam com nossos medos, os super-heróis podem ser inspiradores (PAIVA apud LOEB; MORRIS, 2005, p 28).
Para o desenvolvimento do artigo mencionado, foi realizada uma análise do comportamento infantil, relacionando-o aos heróis de escolha da criança. Para tal análise, foram realizadas entrevistas lúdicas com as crianças e em paralelo técnicas de dramatização, necessárias para recriar e analisar comportamentos e experiências infantis com base nas teorias apresentadas no referencial teórico. Os resultados e discussões obtidos estão baseados nos dados colhidos com seis crianças, três meninos e três meninas.
Os achados apontaram para a inter-influência da identificação com os super-heróis e o processo de construção da autonomia nas crianças participantes desse estudo, quando se toma a relação com suas famílias de origem. É comum o uso do herói nessa fase do desenvolvimento humano (dos cinco aos dez anos) como metáfora das relações mais próximas que a criança forma com as pessoas mais significativas, como sua família. Foi entendido que as características identificadas no herói assim como suas ações são internalizadas pelas crianças que passam a se comportar como eles, isso leva a compreensão da necessidade, em um dado momento do desenvolvimento, de figuras mesmo que imaginárias, como forma de descolamento dos pais.
Foi percebido pelo contato com as crianças que a existência do herói é comum a infância e que as mesmas possuem uma identificação intensa com os ídolos da mesma faixa etária, sendo que os meninos se identificam com o estereótipo masculino e as meninas com o feminino. O super-herói é usado como um meio de socialização entre as crianças, um meio de interação e aceitação entre as mesmas, pois a partir desse contato a criança se fortalece, canaliza seus sentimentos e lida com os dilemas do dia-a-dia. Os aspectos vistos como positivos no herói de escolha são trazidos pelas crianças como delas, em uma tentativa de internalizá-los, elas aderem aos comportamentos que desejam possuir do herói, como no caso da pesquisa a característica de ser “rápido” e vencer as corridas na escola.
Acredito que a pesquisa apresentada seja um bom questionamento para trabalhos futuros, visto que o herói é necessário a criança nessa fase do desenvolvimento, sendo uma forte figura de imitação e contato com o self pessoal. Sendo um tema cotidiano, é importante sua pesquisa e divulgação.
Segue indicação de algumas referências:
Bowlby, John, APEGO E PERDA 1 -Apego, A Natureza do Vínculo, 3ª edição, Martin Fontes, 2002
Osório, L. C. e Valle, M. E. P.(org.), MANUAL DE TERAPIA FAMILIAR, EditoraArtmed, 2009
Ramalho, Cybele M. Rabelo; Corumba, Rosa M.Nascimento; DESCOBRINDO ENIGMAS DEHERÓIS E CONTOS DE FADAS: ENTRE A PSICOLOGIA ANALÍTICA E O PSICODRAMA, Ed.Profint, 2008.
Sodré, Muniz; SOCIEDADE, MÍDIA EVIOLÊNCIA, EDIPUCRS, 2006